Teria gostado de ser discípula de Ícaro.
Como seria lindo ter festejado as bodas de Calisto e Melibea.
Teria gostado de ser
um hitita diante da Rainha Nefertari
o jovem Werther no Rio de Janeiro
a deslumbrante dama sevilhana
por quem Don José repudiou Carmen.
Quisera ter sido o horto do poeta
com a sua verde árvore e o seu poço branco
o inspector fiscal
com quem Maiakovski conversava
Teria gostado de te amar. Juro-te.
Só que muitas vezes a vontade não basta.
A auto-estrada é o tempo que o princípio demora
a converter-se em termo.
Durante, no dia em que me quiseres.
Não se pisam jamais as mesmas pegadas
- Heraclito disse algo parecido –
que porém conduzem ao lugar onde estamos.
Nunca tenhas medo ao horizonte
não há prazer mais saboroso que o trajecto.
Aceita o pão servido em qualquer parte
usufrui do asilo que te oferecerem
mas tem as malas preparadas.
Aprende para teu bem a arte de te pores a andar
Sempre um segundo antes de te despejarem.
Quem se lembrou deste deus impassível
Fabricado com mitos e proibições?
Como é possível este deus a prestações
que assobia para o lado?
Inapreciável quando mais faz falta.
A ignorância total da empatia.
Um deus feito à noite.
Mais que um deus, uma jaula.
Tivéssemos podido, digo eu
tê-lo concebido como uma imensa fonte.
Um deus voluptuoso, favorável à sesta.
Um semelhante. Um deus
sem fins lucrativos.
A liberdade criativa deve ter sido sempre uma enteléquia.
Se for verdade que o rancor
desgasta e envelhece lentamente
com o seu rumor calado de pedra de moinho
aposto em ser jovem agora e sempre.
A minha casa está vazia
de bodes expiatórios e culpados.
Acumulo apenas
o valor necessário para continuar a viver
sob a protecção da alegria.
Nunca me inclinei para o fácil fôlego
de adquirir e obrigar. Mesmo a miudeza
desperta sempre em mim um mecanismo frágil
com mais de uma resposta.
Em minha alcova não reinam
proibições nem leis. A minha palavra
é um pátio sem chave
onde é bem recebido quem aprecie
a sombra de uma figueira e um copo de bom vinho.
Não frequento presos nem juízes.
Deixo sentenças e ditames
àqueles que não duvidam. Eu só tenho a certeza
que amo a liberdade e as suas margens.
Quando não aparecer, procurem-me entre as asas
de um pássaro que escapa do inverno.
Com as mãos vazias caminha-se melhor.
Não me pesam os empréstimos. Neste nosso mundo
toda a dívida se contrai no jogo.
Sabias quase todas as coisas
meu querido corpo
frágil lente de fogo.
Quase todas as coisas que aprendi
foram-me antecipadas por ti
com um tremor leve
com uma obsessão inexplicável
com a dinâmica fugidia das nuvens
com um festim de pulsões.
Lástima de certeza inadvertida.
Quanto esforço de análise
quão dura dissecação da existência
para que o algoritmo da razão arroje
no fim, em fim, por fim
um resultado idêntico
ao fruto da pele.
Sabedoria instintiva da usança
código secular da epiderme
aproxima de mim o teu cálix.
No celebrar do corpo, tão feito de presente,
estirando as sua margens e unindo-as ao circulo infinito da seiva,
procuramos em tacteio nossos contornos
para fundir a pele desabitada com o rumor sagrado da vida.
Olhas-me pleno de tudo quanto o prazer forja
espargindo o meu sangue até à origem
assumindo minhas pulsões até ao fundo.
Não existe conjunção mais veraz
nem maior clarão na substância que nos cria.
Esta bendita fusão feita de entranhas,
a artéria permanente da estirpe.
Só quem beijou conhece a imortalidade.